Da moda de viola ao streaming: o Brasil que canta sertanejo
- Fernanda Pugliero e Lara Oliveira
- 5 de mai.
- 8 min de leitura
Do surgimento nas zonas rurais à consolidação como fenômeno de massa, o sertanejo reflete as transformações sociais, econômicas e culturais do Brasil
Por Fernanda Pugliero e Lara Oliveira
A música sertaneja é um dos gêneros mais populares e influentes do Brasil, passando por diversas transformações ao longo das décadas. Desde as raízes na moda de viola, até a consolidação do sertanejo romântico nos anos 1990, com duplas como Chitãozinho e Xororó, o estilo se reinventou. Nos anos 2000, surgiu o sertanejo universitário, liderado por nomes como Jorge e Mateus. Atualmente, o gênero continua se expandindo, misturando-se com elementos do pop, eletrônico e até do funk, conquistando ainda mais espaço no cenário nacional e internacional. Além da evolução musical, o sertanejo se consolidou como um fenômeno cultural e econômico, movimentando muito dinheiro anualmente com shows, festivais e plataformas de streaming. As redes sociais desempenham um papel fundamental na divulgação de novos talentos, tornando o gênero acessível ao público.
Esse estilo musical, inicialmente, ficou conhecido como sertanejo caipira (sertanejo raiz), centrado em valores católicos tradicionais e marcado pelas modas de viola e pela simplicidade. A viola antes mesmo de chegar no Brasil, já era parte importante na vida dos portugueses, que utilizavam em comemorações. A nacionalização desse instrumento ocorreu através dos caboclos que construíram cópias dos instrumentos de Portugal, dando início a uma nova tradição que ajudaria a nação a mostrar seu talento musical, e com a ajuda dos tropeiros, o hábito de tocar viola foi expandido pelo interior do país.

A palavra “sertanejo” surgiu devido à migração do habitante nordestino (sertanejo) para o sul e sudeste do país. Inicialmente, a música denominada caipira narrava a dureza do sertão, o amor, a saudade e a simplicidade da vida no interior. A moda de viola era tocada em forma de sátira e pouco romântica. O sertanejo raiz surgiu em 1929 e durou até 1944. Por muitos anos, a cultura caipira foi discriminada e marginalizada pelo homem urbano. Atualmente, em um mundo que se preocupa com multiculturalismo e diversidade cultural, essa cultura passa a ser vista de uma forma diferente, buscando sua valorização.
A chegada da rádio na década de 1920 foi muito importante para o crescimento e expansão desse ritmo. A sonoridade rural dos estados de São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná e Minas Gerais foi difundida e adaptada, passando a utilizar, então, o termo “sertanejo". Na década de 1930 a 1950, a rádio vivenciou a chamada “Era do Ouro" e se transformou no principal meio de divulgação de informações e artistas de vários gêneros.
A mudança no estilo deu início com a dupla Léo Canhoto e Robertinho, que acrescentou em suas canções um novo instrumento: a guitarra elétrica, que na década de 1960 era a principal tendência nas bandas de rock. Os artistas seguiam influências da música country dos Estados Unidos e do rock massificado no Brasil pela Jovem Guarda, o que levava a dupla para uma proposta diferente dos demais cantores da época. Assim, surgiu então o sertanejo romântico, também considerado como estilo “brega”. Ao mesmo tempo, houve uma mudança no estilo das vestimentas, foi incorporado o uso de instrumentos musicais eletrônicos e as composições passaram a ter elementos da música urbana de massa.

Com o surgimento da música sertaneja romântica, até alguns anos atrás, esse estilo era representado por duplas como Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo e Zezé di Camargo e Luciano. Já na atualidade, existe um grande número de duplas e cantores solo que se intitulam “caipiras" ou “sertanejos", mas que fogem da proposta da moda de viola. Esses se aproximam então do sertanejo universitário.
Transformações sonoras e temáticas
A música caipira transformou sua principal característica, falar sobre o cotidiano sertanejo/caipira. As letras que mais fazem sucesso entre o público brasileiro atualmente apresentam temas como brigas de casais, corações partidos e a dor da traição. Apesar disso, o sertanejo universitário recuperou o gosto e a herança cultural da música raiz. Grande parte das duplas do sertanejo universitário vem fazendo regravações de músicas que fizeram sucesso antigamente, durante a fase caipira.
A partir de uma nova estruturação econômica brasileira, pautada na crescente industrialização e urbanização do país, ocorreu também a transformação do conteúdo rural para o urbano. Com isso, o sertanejo incorporou características da indústria cultural e tornou-se o primeiro gênero de massa mais consumido no país, devido a popularidade e inserção de novos ritmos. Além disso, os meios de comunicação e a ampliação do mercado incentivaram a difusão e consumo do gênero.
Dessa forma, houve o surgimento do sertanejo universitário, por volta de 2007, criado pelos jovens universitários com um novo estilo. As músicas ressaltam a realidade da fase jovem, com símbolos sexuais, festas, dinheiro e bebidas alcoólicas. Mesmo com essa grande mudança na temática das músicas, a tendência é que esse gênero continue passando por transformações, exigidas pela sociedade, para que sobreviva.
O domínio nas plataformas digitais
Até chegarmos aos dias atuais, muitas letras foram modificadas e o gênero se transformou em um mercado vantajoso. Hoje, esse estilo é o que mais arrecada com Ecad (Escritório Central de Arrecadação), e que possui os shows mais caros de todo o universo musical brasileiro. A música sertaneja, utiliza do que está na internet para fazer sucesso. A marca de um carro, de um perfume ou até mesmo de uma bebida são utilizados em suas composições com o intuito de acompanhar o que as pessoas estão consumindo, ou que gostariam de consumir, sem perder sua essência. As letras mais curtas e monossilábicas também representam bem o quão grande está sendo toda essa transformação.
A força do sertanejo no cenário musical brasileiro atual se reflete claramente nos rankings de plataformas de streaming. No Spotify, o gênero domina as paradas da década no Brasil, tanto entre os artistas mais ouvidos quanto nas músicas mais reproduzidas.

Artistas mais escutados na década no Brasil, segundo Spotify:
Marília Mendonça
Henrique e Juliano
Jorge & Mateus
Gusttavo Lima
Zé Neto & Cristiano
Matheus & Kauan
Anitta
Wesley Safadão
Maiara & Maraisa
MC Ryan SP
A presença do gênero no Spotify também se destaca nas faixas mais populares do período.
Músicas mais escutadas na década no Brasil:
“Leão” - Marília Mendonça
“Nosso Quadro” - Ana Castela
Arranhão - Ao Vivo” - Henrique & Juliano
“Bombonzinho - Ao Vivo” - Ana Catela, Israel & Rodolffo
“Mal Feito - Ao Vivo” - Hugo & Guilherme, Marília Mendonça
“Eu Gosto Assim - Ao Vivo” - Gustavo Mioto, Mari Fernandez
“Liberdade Provisória - Live - Ibirapuera / 2019” - Henrique & Juliano
“Erro Gostoso - Ao Vivo” - Simone Mendes
“Deixe Me Ir - Acústico” - 1Kilo
“Shape Of You” - Ed Sheeran
Com forte presença nas plataformas de streaming e nas preferências do público, o gênero mantém sua posição de destaque ao longo da última década. Mais do que uma tendência, o sertanejo se consolida como um fenômeno cultural duradouro.
A nova geração: Arley César e a versatilidade nos palcos
A evolução notável do sertanejo nos últimos anos impacta também os próprios artistas que vivem e moldam essa evolução diariamente. Arley César, cantor natural de Montes Claros, hoje se destaca nas casas de shows de Uberlândia e é um exemplo dessa transformação. Ele iniciou sua carreira inspirado em nomes como Gusttavo Lima e rapidamente percebeu que o segredo do sucesso moderno está na capacidade de adaptação. "Sempre tento basear meu repertório no que o público está sentindo no momento. A gente começa mais tranquilo, deixando público a vontade e depois vai aquecendo, misturando sertanejo universitário e os clássicos modões", explica o artista.
A fusão de estilos tornou-se uma característica marcante da nova geração do sertanejo. Para Arley, essa diversidade não apenas amplia o alcance do gênero, mas também respeita suas raízes. "Hoje existe o breganejo, o pagonejo, tirando o rocknejo, tudo com sertanejo a gente já viu”. Para ele, essas adaptações são muito boas e criam um grande repertório para as apresentações. “Eu mesmo, além do sertanejo raiz e universitário, incluo pop rock e axé no meu repertório para agradar a todos. Isso é super válido para alcançar o maior público possível", destaca. Essa versatilidade reflete a capacidade do sertanejo de dialogar com diferentes gerações e gostos musicais. “Eu sempre levo outros ritmos, outros estilos para que todo mundo que está presente saia bem satisfeito”, acrescenta.

Outro fator crucial nessa transformação foi o avanço da tecnologia e das redes sociais. Se antes o sucesso dependia das rádios, hoje plataformas como Instagram e Spotify são essenciais. "A internet veio para facilitar a divulgação. Meu Instagram é minha vitrine. Quando um bar entra em contato, a primeira coisa que pede é um vídeo ou o link do meu perfil", relata Arley. Para ele, apesar dos desafios emocionais que a exposição digital pode trazer, as redes sociais democratizaram o acesso de novos talentos ao público.
Arley acredita que o sertanejo continuará evoluindo, absorvendo novas influências e consolidando-se como o gênero mais ouvido do país. "O sertanejo nunca perde sua postura. Mesmo com a chegada de outros ritmos, ele mantém seu espaço porque está na alma do brasileiro", afirma. Mesmo com as novas transformações, para ele, o sertanejo raiz ainda predomina e é o preferido do público. Ele relata que, em suas apresentações, até mesmo os adeptos a outros estilos sempre cantam músicas sertanejas. “Todo mundo gosta, toda família gosta, é um ritmo agradável”, conclui. Com planos de expandir sua carreira e investir em produções próprias, Arley representa uma nova geração de artistas que honra as tradições do sertanejo enquanto abraça as mudanças necessárias para encantar públicos cada vez mais diversos e mais conectados.
A voz do público: o sertanejo como patrimônio cultural
Para entender de perto esse sucesso e a paixão que atravessa o tempo e conecta milhões de pessoas, a reportagem apresenta também o relato de um fã desse gênero, que compartilhou histórias e memórias da música sertaneja. Marcello Matheus contou que desde pequeno a música sertaneja sempre esteve presente em sua vida, por conta da forte influência familiar e das raízes na zona rural. Para ele, o gênero é mais do que um estilo musical, é um “patrimônio cultural” que retrata a vida no campo e valoriza o trabalhador rural. Entre as lembranças mais marcantes, ele recorda com emoção da primeira vez que ouviu “Fogão de Lenha”, apresentada por seu pai. Na época, com oito anos, viu o pai se emocionar profundamente ao explicar que aquela canção retratava a dura realidade de ter deixado a família e os amigos aos 15 anos para buscar uma vida melhor na cidade grande.
A paixão pelo sertanejo se divide entre o estilo raiz, que ele admira pela profundidade das letras e relevância histórica, e o universitário, que traz alegria e descontração para momentos com amigos e família. Entre os artistas preferidos, ele cita nomes clássicos como Milionário & José Rico, Matogrosso & Mathias, Chitãozinho & Xororó e Trio Parada Dura, e do sertanejo mais recente, Jorge & Mateus, Jads & Jadson e Henrique & Juliano, os quais são admirados pela entrega e emoção com que interpretam suas músicas.
Para Marcello, um show sertanejo inesquecível precisa de um artista com presença de palco, emoção e um repertório diverso que mantenha o público envolvido do início ao fim. Além da música, ele também se identifica profundamente com a cultura sertaneja como um todo: é fã de rodeios e adota a moda country no dia a dia, tanto pelo conforto quanto pelo estilo. Sobre as mudanças no gênero ao longo dos anos, ele vê com bons olhos as novas fusões, como o sertanejo pop, sertanejo eletrônico e o funknejo, por trazerem dinamismo e novas sensações à música sem perder a essência que o conquistou desde a infância.

A trajetória da música sertaneja é marcada por transformações que refletem não apenas mudanças no gosto musical, mas também na sociedade brasileira. Das modas de viola à era digital dos streamings e redes sociais, o gênero segue como uma expressão da cultura nacional. Com forte apelo popular e capacidade de se renovar sem perder suas raízes, o sertanejo reafirma seu protagonismo no cenário musical nacional, demonstrando que mesmo diante de novas tendências, continua presente na vida dos brasileiros.
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