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Quando o meio vira a mensagem: a transformação do sertanejo

  • Foto do escritor: Fernanda Pugliero e Lara Oliveira
    Fernanda Pugliero e Lara Oliveira
  • 29 de abr.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 5 de mai.

Por Fernanda Pugliero e Lara Oliveira


Do chão batido das festas do interior às listas de mais ouvidas do Spotify, o sertanejo percorreu uma longa estrada mantendo suas raízes enquanto se reinventa para conquistar multidões. O gênero musical, nascido nas raízes caipiras do Brasil em versos simples que retratavam a lida rural, é hoje um fenômeno que movimenta cifras milionárias pelo país. Ele sustenta nomes de sucessos, arrasta multidões, ocupa o topo das plataformas digitais e é o estilo musical favorito de boa parte da população brasileira.


O que explica essas transformações? Mais do que a evolução musical, a resposta está nos meios que transportam essa música e aí entra a tecnologia. É impossível não falar sobre os impactos dos meios de comunicação e da influência tecnológica na produção e consumo da música na contemporaneidade. O sertanejo se transformou graças à tecnologia e aos meios digitais, que influenciam diretamente sua estética e alcance, isso é um fato. Por isso, as transformações e adaptações desse estilo tradicional em uma potência comercial e cultural podem ser compreendidas a partir da Escola de Toronto, em especial a teoria do canadense Marshall McLuhan e a vertente tecnológica.


As raízes do sertanejo


Para compreender essas transformações é essencial passar pela história e adaptações do gênero. O sertanejo surgiu ainda no início do século XX, com a moda de viola, a partir das vivências dos sertanejos, habitantes das áreas mais remotas e afastadas, como o sertão nordestino e o interior de estados como Minas Gerais, Goiás e São Paulo. A música caipira nasceu como uma forma de expressar sentimentos e experiências dessas comunidades. O grande responsável por consolidar esse novo estilo musical no Brasil foi Cornélio Pires, conhecido como o pai do gênero. Pires carrega essa fama por ser pioneiro ao trazer, não apenas a música, mas também os costumes caipiras para os grandes centros. 


Cornélio Pires, marco inicial da música sertaneja no Brasil                                                                                                                                      Foto: Acervo/ Pero Massa/ Instituto Cornélio Pires
Cornélio Pires, marco inicial da música sertaneja no Brasil Foto: Acervo/ Pero Massa/ Instituto Cornélio Pires

O estilo foi desacreditado pelas maiores gravadoras daquele tempo e. com o próprio dinheiro, Cornélio Pires formou um grupo de música e lançou o primeiro disco sertanejo. Em poucos dias, aquela leva de discos desapareceu das prateleiras das lojas. O sucesso foi tão grande que outras gravadoras logo formaram novos grupos concorrentes. As primeiras letras da música sertaneja, a era do sertanejo raiz ou da música caipira, abordavam o cotidiano no campo, a tranquilidade e o contato com a natureza, exaltando a vida no interior e os famosos “causos” rurais. Algumas músicas também tinham críticas ou elogios ao Estado e chegaram a ser censuradas por desagradar líderes políticos. 


Com o passar dos anos, o estilo continuou conquistando cada vez mais admiradores. A chegada do rádio na década de 1920 foi muito importante para o crescimento e expansão do ritmo. Nas décadas de 1930 a 1950, o rádio vivenciou a sua chamada ‘Era do Ouro’ e se transformou no principal meio de divulgação de vários gêneros. Instrumentos como a viola, trazida pelos portugueses ao Brasil, a sanfona e o berrante tornaram-se icônicos no acompanhamento das letras que descreviam o cotidiano e as emoções dos sertanejos.


As ondas de transformação


Aos poucos, o sertanejo começou a ganhar mais espaço urbano e influências da música popular brasileira e até de gêneros internacionais. A introdução da guitarra elétrica por Leo Canhoto e Robertinho, no ano de 1969, é considerada para alguns o marco de uma nova geração: o sertanejo romântico. Ele apresenta letras mais sentimentais, arranjos orquestrais e melodias acessíveis a partir dos anos 1960. A consagração veio com a dupla Chitãozinho e Xororó e o sucesso estrondoso de "Somos Apaixonados" (1982), vendendo 1,5 milhão de cópias e abrindo as portas de novos espaços para o gênero, que passou a ocupar também emissoras de televisão, como a Rede Globo. As duplas se tornaram ícones da música nacional e os arranjos adquiriram instrumentos elétricos.


As transformações no gênero sertanejo continuaram e nos anos 1990 surgiu o sertanejo universitário, que ganhou força entre os jovens nas universidades. Consolidado principalmente a partir dos anos 2000, ele adotou uma sonoridade mais leve e dançante, incorporando influências do pop, axé e funk. As letras também mudaram: tornaram-se fáceis de memorizar e passaram a retratar baladas, relações amorosas e o cotidiano jovem. Além dos tradicionais DVD, da TV e do rádio, os meios digitais foram fundamentais para a divulgação do estilo, com músicas e shows que rapidamente explodem no YouTube e permitem a interação dos fãs. O sertanejo universitário, com nomes como Jorge e Mateus, fidelizou o público, marcou gerações e ampliou o sucesso da música sertaneja.


A trilha sonora de tantas histórias, as canções de Jorge e Mateus marcaram gerações                                                                 Foto: Jhonnathas  Franco
A trilha sonora de tantas histórias, as canções de Jorge e Mateus marcaram gerações Foto: Jhonnathas Franco

Fragmentações e novos caminhos


A partir de 2010, o sertanejo se fragmentou em diversas vertentes, refletindo as mudanças culturais e a expansão do público. Uma das vertentes mais marcantes foi o feminejo, que destacou o protagonismo feminino para o gênero, com artistas como Marília Mendonça, Maiara e Maraísa e Naiara Azevedo. Suas músicas abordam temas de empoderamento e novas perspectivas sobre relacionamentos. Hoje, o sertanejo preserva traços de sua primeira geração, mas também se renova com a força das tantas fusões musicais, como popnejo, funknejo e o agronejo este último resgata o orgulho da vida rural. 


Fenômeno nas redes sociais, a cantora Ana Castela conquista o Brasil com suas fusões no sertanejo                                     Foto: Érico Andrade/ g1
Fenômeno nas redes sociais, a cantora Ana Castela conquista o Brasil com suas fusões no sertanejo Foto: Érico Andrade/ g1

As vertentes e fusões são respostas diretas às exigências do mercado e à lógica dos algoritmos: músicas curtas, dançantes, fáceis de viralizar. Nesse novo cenário, o sertanejo não canta apenas para o interior, mas para uma população hiperconectada, que descobre e consome música em plataformas como Spotify, TikTok e Instagram o dia inteiro. Essas plataformas, colocaram artistas em contato direto com seu público, permitindo interações e rompendo as barreiras geográficas e editoriais das mídias tradicionais. 


O sertanejo de hoje é múltiplo, comercial e profundamente influenciado pelas lógicas digitais, um gênero que se adapta para sobreviver e dominar. Tem quem diga que ele se perdeu de suas raízes. No entanto, é o público que determina o quê e como será produzido. Cabe ao gênero e a seus artistas se reinventarem, se adaptarem às tecnologias, criando vertentes que acompanhem as transformações culturais e sociais de seu público. O sertanejo soube fazer isso como nenhum outro gênero.


O sertanejo sob a ótica da Escola de Toronto


As transformações do sertanejo podem ser analisadas sob a ótica da Escola de Toronto, especialmente pela vertente tecnológica do estudo dos meios. Um de seus principais pensadores, Marshall McLuhan, cunhou a famosa frase: “O meio é a mensagem”, ou seja, não é apenas o conteúdo que importa, mas onde ele é transmitido. Nessa perspectiva, os meios de comunicação não são apenas veículos neutros de transmissão, eles moldam a própria mensagem e transformam a forma como percebemos e vivenciamos o mundo.


No contexto do sertanejo, essa máxima ganha uma nova dimensão. Ao aplicarmos essa ideia ao cenário do sertanejo, percebemos que o gênero não seria o que é hoje sem os meios que o impulsionaram. A transição dos discos de vinil e programas de rádio para as plataformas de streaming, redes sociais e videoclipes no YouTube alterou profundamente não só a estética da música, mas também a maneira como o público interage com ela. O rádio levou a música às zonas rurais e urbanas, a TV transformou artistas em ídolos nacionais e a internet multiplicou o acesso e as possibilidades do ritmo. 


Na era analógica, o sertanejo raiz, com suas letras nostálgicas sobre a vida no campo, era veiculado principalmente por emissoras de rádio e festivais regionais. Já o sertanejo universitário e suas variantes contemporâneas, que misturam batidas eletrônicas, funk e pop, são moldados para viralizar no TikTok, tocar nas playlists de algoritmos e gerar engajamento instantâneo. O estilo se tornou uma verdadeira fábrica de hits, com refrões curtos e dançantes moldados para viralizar e não sair da cabeça de seus fãs. Essa mudança no meio altera a mensagem: o novo sertanejo fala mais de festas, relacionamentos urbanos e consumo, refletindo o contexto digital e urbano de seu público atual. Mais do que nunca, a tecnologia se torna o próprio meio e a própria mensagem, moldando sons, temas e estéticas. 


Em outra de suas formulações mais conhecidas, McLuhan propôs o conceito de aldeia global: a ideia de que as tecnologias da informação encurtam distâncias e conectam pessoas do mundo inteiro em tempo real, como se estivéssemos todos em uma única aldeia. O que hoje é uma realidade global foi previsto pelo olhar inovador de um verdadeiro gênio. McLuhan foi capaz de enxergar a internet décadas antes de sua criação.


O sertanejo vive hoje essa aldeia global. Um clipe gravado em Goiânia pode viralizar em minutos e ser assistido em Tóquio. Um refrão criado num estúdio no interior de Minas pode virar trend mundial no TikTok. A música que antes precisava de rádio para alcançar o público, hoje se espalha por likes, reposts e algoritmos. Os meios digitais não só influenciaram sua produção, mas também modificaram a forma como a música é consumida. O sucesso depende de métricas, de engajamento e de presença online constante. O som é importante, mas a estética, o vídeo e o corte curto e viralizável para a aldeia global também fazem parte do pacote. O sertanejo entendeu isso como poucos e se transformou para atingir cada vez mais um público maior e mais conectado.


O meio é a nova melodia


A corrente tecnológica transformou o processo de produção musical. Estamos nos referindo às inovações técnicas, sonoras, instrumentais, aos elementos da narrativa poética e principalmente, às novas plataformas de divulgação. Softwares de gravação, autotune, sampleamento, colaborações e interações permitem que artistas experimentem fusões antes impensáveis. O sertanejo deixou de ser exclusivamente rural para se tornar um mosaico sonoro: sertanejo com funk, com eletrônico e até com trap. Essa hibridez potencializada pela tecnologia não apenas moderniza o som, mas amplia o alcance do gênero, rompendo barreiras geográficas e culturais. 


Paixão que arrasta multidões! A força do público sertanejo que lota shows por todo o Brasil.                                                      Foto: Alisson Demetrio
Paixão que arrasta multidões! A força do público sertanejo que lota shows por todo o Brasil. Foto: Alisson Demetrio

Nesse cenário, o sertanejo encarna perfeitamente a ideia mcluhaniana de que os meios moldam o conteúdo e a recepção dele. A linguagem visual dos clipes e os “versos-chiclete” pensados para as trends mostram que, mais do que nunca, o meio (as plataformas digitais) é também a mensagem que cativa, converte e fideliza o público. Não se trata de perder suas raízes, mas de expandi-las. É nisso que acreditamos: o sertanejo sabe se multiplicar e se adaptar, alcançando cada vez mais pessoas e se mantendo no topo.


Em suma, a transformação do sertanejo não é apenas musical é também comunicacional. Ele representa como a cultura popular precisa se adaptar às novas tecnologias e como os meios contemporâneos redefinem o conteúdo que veiculam. A fusão de ritmos e o uso estratégico das ferramentas digitais não apenas ampliam seu alcance, mas permitem transformações e resistências do gênero. Lançamentos estratégicos, canções virais e a forte presença digital são hoje fundamentais para impulsionar carreiras e garantir a popularidade do sertanejo nas novas gerações. 


Defendemos que a tecnologia e os meios digitais não apenas divulgaram o sertanejo: eles o transformaram. A música passou a ser moldada pelo formato que a carrega. McLuhan estaria certo no sertanejo digital, o meio é, de fato, a mensagem. E é essa mensagem que hoje ecoa do interior aos grandes centros urbanos, conectando pessoas, emoções e identidades através da rede, como numa verdadeira aldeia global, provando que, no Brasil, a trilha sonora do povo evolui junto com os fios da rede.


 
 
 

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